Brasileiros acham mais importante garantia da “manutenção da ordem” do que a liberdade de expressão
Politização da pandemia e o consequente fortalecimento da polarização têm sido fatores geradores de alta instabilidade para o regime democrático brasileiro, diz pesquisa "Valores em Crise". Terceira e última fase de levantamento feito pelo Instituto Sivis vai ocorrer no segundo semestre deste ano
Quando questionados sobre qual deveria ser a prioridade máxima do Brasil nos próximos anos, 40,8% dos brasileiros disseram preferir a “manutenção da ordem” no país em relação à garantia da liberdade de expressão, apontada como prioritária somente por 17,9% dos respondentes. Os resultados são da segunda etapa da pesquisa “Valores em Crise”, idealizada por pesquisadores da World Values Survey Association e aplicado no Brasil em meio à pandemia de Covid-19 pelo Instituto Sivis em parceria com o Instituto de Estudos Avançados da Universidade de São Paulo (USP), e o apoio financeiro da Embaixada dos Países Baixos e do Instituto Votorantim.
Na primeira fase da pesquisa, os índices foram de 47,1% e 18,9%, respectivamente, o que sinaliza uma aceitação da população quanto à possibilidade de o governo passar por cima das leis, do congresso e das instituições com o objetivo de “resolver problemas e melhorar a vida da população”. Enquanto na primeira fase do levantamento, 25,1% dos respondentes disseram concordar totalmente com a intervenção, na segunda etapa, o índice aumentou para 26,4%. Os resultados indicam, portanto, que os que aceitam relativizar a democracia em alguma medida chegaram a mais de 80% da amostra, sendo que 1 em cada 4 respondentes concorda totalmente com a ideia de que é válido que o governo atropele a constituição para sanar uma crise.
A primeira etapa da investigação ocorreu entre os meses de maio e junho de 2020. A segunda, agora, entre os meses de janeiro e fevereiro. A terceira e última vai acontecer pouco mais de um ano depois da primeira, no segundo semestre de 2021. Foram obtidas respostas de 1.929 indivíduos nesta segunda fase. O mesmo grupo de pessoas foi convidado a participar das duas etapas. “Pouco mais de 3.500 pessoas responderam à primeira pesquisa, em maio e junho de 2020, mas a taxa de retenção de indivíduos no painel entre uma onda e outra ficou em cerca de 55%, o que é bastante razoável dado o longo intervalo de cerca de sete meses entre a aplicação das duas ondas. Esperamos obter pelo menos mil respostas válidas na terceira onda, garantindo uma amostra substancial para extrair conclusões significativas”, diz Diego Moraes, pesquisador do Instituto Sivis, mestre e doutor em Política Científica e Tecnológica e responsável pela execução de pesquisas voltadas para o fortalecimento da democracia e da cultura política no Instituto.
A pesquisa foi pensada para descobrir como a cultura política brasileira pode estar sendo impactada pela pandemia, que vem sendo causada no pelo novo coronavírus. Desde março de 2020, ela atinge o Brasil com cada vez mais intensidade. Já são mais de 350 mil mortos e as taxas de vidas perdidas em um único dia são violentas: no dia 06 de abril o Brasil registrou mais de 4 mil mortes pela doença em apenas 24 horas. A condição coloca o país muito próximo de se tornar a pior nação do mundo em mortes por Covid-19, caso supere os Estados Unidos, que foi o país a registrar o maior número de vítimas fatais em um único dia até agora, com 5 mil mortes em fevereiro deste ano.
Democracia fragilizada
Outro aspecto da segunda fase da análise que chama a atenção, é o fato de que diminuiu, mesmo que de forma ainda pouco expressiva, o índice de brasileiros que acreditam que “apesar de ter alguns problemas, a democracia é preferível a qualquer forma de governo”. Na segunda etapa, 44,5% dos respondentes disseram concordar totalmente com essa afirmação – enquanto, na primeira etapa, o índice foi maior: de 45,4%. Do total dos respondentes, 5,6% discordaram totalmente, indicando não defender a democracia. Na primeira etapa, esse percentual ficou em 5%, o que revela um leve crescimento dessa opinião. Ocorreu também uma queda no percentual de indivíduos que rejeitam a relativização da democracia (de 19,5% para 16,8%). Resultados como esses se relacionam com a manutenção da descrença do brasileiro nas instituições.
Brasileiro ainda desconfia das pessoas e das instituições
A grande maioria das pessoas não confia nas instituições ou em desconhecidos. Enquanto apenas 5,4% dos respondentes disseram ter “muita confiança” nas instituições, 17,9% revelaram não sentir nenhuma. Mesmo assim, um leve aumento nas categorias de maior confiança institucional (de 4,6% para 5,4%) e interpessoal (de 1,6 para 2,6) entre uma fase e outra da pesquisa pôde ser observada, fato que indica que uma tendência de crescimento da confiança nas pessoas e nas instituições entre as diferentes etapas do levantamento pode ter acontecido.
Embora em um primeiro momento estivesse prevalecendo a percepção de maior solidariedade entre as pessoas durante a pandemia, houve uma queda considerável do percentual daqueles que veem mais solidariedade do que hostilidade entre as ondas: de 48,8% na primeira para 37,5% na segunda.
Para Diego, a expectativa era de que a pandemia representasse uma oportunidade de fortalecimento da cultura democrática no Brasil, como ocorreu em outros países, já que, na medida em que as pessoas se solidarizam mais, elas tendem a aumentar a tolerância e a disposição para o diálogo. “O que estamos observando, infelizmente, é que isso ainda não está se materializando como esperado. A politização da pandemia parece que faz com que nossa cultura democrática esteja sendo minada”, diz.
Um dado positivo, tem relação com à conquista de uma maior credibilidade por parte da mídia tradicional, que vinha perdendo confiança. Enquanto na primeira fase da pesquisa 30,3% dos respondentes disseram que “as mídias tradicionais são mais confiáveis”, na segunda fase o número aumentou para 32,7%. A confiança nas mídias sociais, entretanto, apesar de ter reduzido um pouco, ainda continua alta. 18,7% das pessoas disseram, na primeira fase, acreditar que “as mídias sociais são mais confiáveis”. Na segunda, o número ficou em 18,4%.
Aumento da polarização no Brasil
Houve, ainda, um leve crescimento nos extremos da avaliação sobre o governo no enfrentamento da pandemia: o percentual de indivíduos que avalia o governo muito bem passou de 6,4% para 7,8%, enquanto o de indivíduos que o avalia muito mal foi de 35,8% para 38%.“Um dado como esse parece reverberar a politização da pandemia e o aumento da polarização no Brasil, levando cidadãos a preferir posições mais extremadas em detrimento daquelas mais equilibradas. A proporção de indivíduos que avalia o governo negativamente, contudo, ainda é predominante”, diz Diego.
Para o pesquisador, o cenário que a pandemia vem desenhando para a sociedade e a democracia brasileira não parece ser dos mais animadores. Embora, em um primeiro momento, ela possa ter fomentado algumas forças de capital social, parece que o contexto político altamente conturbado no país está minando qualquer oportunidade de se valer desta situação para avançar nossa democracia. “A politização da pandemia e o consequente recrudescimento da polarização têm sido fatores geradores de alta instabilidade para o regime democrático brasileiro. Sem falar nos efeitos deletérios das tensões políticas sobre as próprias políticas sanitárias de contenção da pandemia, levando a um reconhecido fracasso do governo e da política pública brasileira no enfrentamento desta crise. Com a pesquisa ‘Valores em Crise’, pretendemos entender como encontrar caminhos alternativos para fortalecer a democracia. Serão dados fundamentais para nortear este caminho”, conclui Diego.
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